quarta-feira, 31 de março de 2010

HOMENAGEM A GUILHERME DE ALMEIDA

Soneto XXV

O nosso ninho, a nossa casa, aquela
nossa despretensiosa água-furtada,
tinha sempre gerânios na sacada
e cortinas de tule na janela.

Dentro, rendas, cristais, flores... Em cada
canto, a mão da mulher amada e bela
punha um riso de graça. Tagarela,
teu cenário cantava à minha entrada.

Cantava... E eu te entrevia, à luz incerta,
braços cruzados, muito branca, ao fundo,
no quadro claro da janela aberta.

Vias-me. E então, num súbito tremor,
fechavas a janela para o mundo
e me abrias os braços para o amor!

Guilherme de Almeida


1

“e me abrias os braços para o amor”
Assim que se transforma a luz em treva
O quanto da esperança se longeva
Deveras se propõe o agricultor,
Mereça ou não mereça melhor sorte,
No todo se percebe qualquer parte,
Ainda que decerto se descarte
No sentimento a dor que me conforte,
E o pêndulo da vida se mostrando
Por vezes mais cruel não me permite,
Viver além ou mesmo no limite,
O mundo num tremor já desabando,
O corte se aprofunda e a solidão,
Tem neste amor sincera tradução.

2


“fechavas a janela para o mundo”
E desejando além do simples fato
Aonde sem certeza me maltrato
E neste pouco ou muito me aprofundo,
O verso se moldando mesmo insano
Dizendo do que tanto desejara,
A porta escancarada traz a clara
Certeza do passado, e se eu me engano
O vento que ora assola o meu caminho,
Ainda se mostrando desditoso,
Por certo propicia dor e gozo
E nesta variável eu me aninho,
Do vago e tão calado caminhante,
O sol que tanto quis e me agigante.

3


“Vias-me. E então, num súbito tremor,”
Aonde se fez luz agora o nada,
Traçando a sorte há tanto desprezada
E nela o que restou do sonhador,
Ainda que cansado da colheita
Espúria plantação de dor e treva,
O medo a cada tempo mais se ceva
Enquanto o fanatismo se deleita,
Gerasse pelo menos luz e paz,
Mas nada do que eu quis ora recolho,
A sorte traduzida num abrolho,
E nele se mostrasse mais capaz
Quem tanto produzira uma esperança
Diversa do que a vida agora alcança.

4


“no quadro claro da janela aberta”
Sofismas do passado ainda dizem
Diverso do que tanto contradizem
Desejos quando a sorte me deserta,
Alertam-se deveras caminheiros
Enfrento os temporais e sei do quanto
A vida num momento em desencanto,
Promete novos cortes e espinheiros,
Jogando contra o medo num confronto,
Aonde poderia ser mais eu,
O verso noutro verso se perdeu,
E o medo se mostrando sempre pronto,
Assídua luta nega algum futuro,
O amor que tanto quero e não procuro.

5



“braços cruzados, muito branca, ao fundo”
Da cena perpetrada em noite vaga,
Apenas o temor ainda afaga
E dele cada vez mais eu me inundo,
Servindo de tenaz, quando pudesse
Vencido pela angústia do não ser,
Perdido em tamanho desprazer
A fruta que colhera se apodrece
E nada me apetece nem o sonho,
Devastação completa anunciada,
A porta totalmente destroçada
E ao canto que inda busco já me oponho
Erguendo um brinde à dor que tu me deste,
O solo se mostrara mais agreste.

6


“Cantava... E eu te entrevia, à luz incerta,”
Traçando a lucidez onde jamais
Calassem no meu peito vendavais,
E o quanto da esperança não me alerta,
Refúgios em refugos, mera escória
Dos tantos que pensara e nunca pude,
A vida se negando em atitude
Venal e quando pode merencória
Resume esta passagem pelo tempo
E dita sem sentido algum momento,
E sendo solitário me atormento,
A cada passo em falso um contratempo
Gerindo ao caminheiro um amanhã
Escassa poesia, e quando há: vã.

7


“teu cenário cantava à minha entrada”
Gerânios da janela, flores tantas,
E nelas com certeza desencantas
Sabendo ser volúvel tal florada,
Ausente primavera em duro inverno
Porquanto me iludira e não soubera
Da vida senda amarga e tosca fera,
Na qual e pela qual sempre me hiberno,
Vasculho nos meus bolsos, busco a chave
Que tanto se segreda e me segrega,
A cada corte afunda a mesma regra
E nela vejo apenas mero entrave,
O vandalismo ronda o sentimento,
E dita a cada dia o desalento...



8

“punha um riso de graça. Tagarela,”
Já não continha a luz e se mostrava
Gerando qual vulcão a imensa lava,
Ao mesmo a fúria se revela
No olhar feito ânsia e gozo, num instante
O foco variável dita o medo,
E quando em novo passo assim procedo,
A senda muitas vezes deslumbrante
Esgota-se em diversa tempestade,
Gestando uma alegria aonde posso
Dizer do caminhar talvez só nosso
E quando se perfaz algema e grade,
No quarto algum momento mais venal,
Após o nosso amor convencional.

9


“canto a mão da mulher amada e bela”
E sei que tantas vezes seduzido,
Tocado mais profundo na libido,
O amor em gozo audaz assim se sela,
Mas tanto quanto pude acreditar
Difícil caminhada se porfia,
E nela muitas vezes a harmonia
Diversa posso mesmo imaginar,
Ansiosamente vejo que se trama
A sanha de um vivente em luz tão vária,
A morte se prevê e é necessária,
O quão se mostra frágil, mesmo, a chama,
Ditames de um amor que tanto quero,
Mas sei em dissonância, louco e fero.

10


“Dentro, rendas, cristais, flores... Em cada”
Retrato se mostrando variável,
Por vezes tanto audaz ou intragável
Condena o navegante à derrocada,
Destroços se espalhando pela sala,
O peso do viver vergando então
Quem sabe da completa sedução
E nela uma alma resta enfim vassala,
O corte de um amor pela raiz,
A treva sonegando uma esperança
E quando se porfia uma aliança
A história sonegando contradiz,
O gosto tão amargo do viver,
Invade num instante todo o ser.

11


“e cortinas de tule na janela”
Trancafiando a sorte em tais paredes,
Aonde se pudessem tantas sedes,
O quarto em solidão, a vida sela,
Geraste pelo menos fantasia,
E nesta confusão de sentimento,
Do nada vez em quando me alimento
Acaso pós acaso o medo guia
A par da tempestade que virá,
Não deixo-me levar em falso trilho,
E quanto mais perdido este andarilho
Não sabe se persiste aqui ou lá,
Somente segue o medo a cada instante,
E dele sua enorme variante.

12


“tinha sempre gerânios na sacada”
Quem semeara flores e tentara
Conter a grande fenda enorme escara
Aonde se mostrasse mais calada
A vida entranha a mesma primavera
Na sonhadora fronte de quem ama,
E tendo-se fugaz etérea chama,
Quem mais produz deveras mais espera,
O vento se mostrando em fonte audaz
Cravando no meu peito a furiosa
Clava que decerto sempre glosa
O quanto poderia ter em paz,
Não posso traduzir em simples flores,
O todo feito em mágoas e terrores.

13


“nossa despretensiosa água-furtada,”
Aonde amor pudesse, mas não veio,
Ainda se perfila em vão recreio
A luz que traduzira esta alvorada
Nublosa que deveras se espalhando
Gerara tão somente a solidão,
Os dias no futuro mostrarão,
O quanto desejei em fogo brando
E sendo sempre acesa imensa frágua
Aonde não pudesse desejar
Além do quanto houvera por sonhar,
E em foz tão tenebrosa já deságua
O amor ainda mesmo audaz e fera
A sorte de uma ausente primavera.

14


“O nosso ninho, a nossa casa, aquela”
Audácia feita em pântano somente,
E nela se traduz podre semente,
Assídua solidão transita em cela,
O parto de um momento mais feliz,
Aborto sem destino, vaga luz,
Ao passo desastroso me conduz
E toda a nossa história não desdiz,
Aonde se mostrasse ora nefasta
O caminhante vê somente o quanto
Do amor se transformara em desencanto,
E a vida noutra via já se afasta,
O gozo momentâneo não comporta,
E assim se trancafia noutra porta.

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