sexta-feira, 26 de março de 2010

HOMENAGEM A RAIMUNDO CORREA

Mal Secreto


Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Raimundo Correia


1

“Em parecer aos outros venturosa”
A vida de quem tenta em vão disfarce
Negar a própria sorte que inda esgarce
O sonho a destroçar jardim e rosa,
Por vezes imagino qual seria
O gosto de um prazer alheio a mim
O tempo de viver chegando ao fim,
Há tanto já inútil, fantasia,
Se um dia houve castelos, sobre a areia
A vida em mansidão, a alma cobiça
Porém a base sendo movediça
Somente o fim da peça me rodeia,
E tento parecer bem mais feliz
Do que esta realidade contradiz.

2


“Cuja ventura única consiste”
Num sonho traiçoeiro e nada mais,
Vivendo sob imensos temporais
Realidade eu sei, deveras triste,
Pudesse caminhar em flórea senda
Teria pelo menos a ilusão,
Porém ao invernar cada estação
Somente a gelidez já se desvenda
Vencido pelo quanto quis e fora
Vazio o dia a dia de quem tenta,
Ainda que minha alma siga atenta
E mesmo- eu te confesso – sonhadora
O fim se aproximando tão vazio,
A ausência da esperança desafio...

3

“Quanta gente que ri, talvez existe,”
Que tenha a mesma sorte ingrata e vã,
Sem ter nos olhos brilho da manhã
Seguindo um Norte, amargo e triste
Tentando disfarçar com um sorriso
O quanto nada tem e nem terá,
Ainda que se mostre um marajá,
Num mundo nababesco, um Paraíso,
No fundo se percebe a dura face
Da imensa insensatez em vago olhar,
E quanto mais procura disfarçar
O tempo noutro rumo ainda passe
Mostrando a realidade nua e crua,
Enquanto em palco torpe e tosco atua.

4

“Como invisível chaga cancerosa”
Espero esta emoção que nunca veio,
O mundo se transforma e neste anseio,
A sorte se mostrando caprichosa,
Vivendo por viver sem nada mais
Do que tola ilusão; prossigo assim,
Sonego mesmo o rumo de onde vim,
E teimo em falsas luzes magistrais,
Condeno-me aos espectros do vazio
E gero deste nada, a minha vida,
Que há tempos percebera já perdida,
Enquanto o mesmo vão; teimo e desfio
Usando cada verso qual pincel,
Mostrando o gris eterno deste céu

5


“Guarda um atroz, recôndito inimigo,”
Sombria face escusa do meu sonho,
E quando a falsa imagem recomponho,
Miragem sem sentido, enfim persigo.
Pudesse ter no olhar a redenção
E o brilho que se ausenta a cada instante,
Um mundo com certeza deslumbrante,
Porém o que fazer? Mera visão...
Desvendo este fantasma dentro em mim
E sei o quanto sou já consumido,
Quisera ter a luz e nela olvido
Esta aridez terrível no jardim,
Mas nada mais consigo e sigo só,
Minha alma se alimenta deste pó.

6


“Quanta gente que ri, talvez consigo”
No espelho vê a face de um bufão,
A sorte se transforma em negação
E aonde conseguir algum abrigo?
O mundo traça em linhas tão diversas
Caminhos para os quais não se prepara
Gerando dentro da alma, a chaga e a escara
Distante do que dizem nas conversas
E tentam demonstrar felicidade
Aonde nunca havendo algum momento
De paz e de alegria. E o sofrimento
Somente a cada noite, mais invade.
O riso se transforma em ironia,
Mortalha de um fantasma ora se cria.


7


“Nos causa - então piedade nos causasse-
Temor por sua face majestosa,
Mas quando se percebe mera glosa,
A vida traduzindo novo impasse,
E o quanto se mostrara em falso guizo
Diverso do que tenta e até consegue,
A sorte não traduz ali albergue
Distante dos clarões que ora matizo.
Ao desnudar-se assim tal criatura
Percebo quão vazio sob um terno
Aonde primavera diz inverno,
Uma alma tenebrosa, parca e escura
E piedade; tenho nos meus olhos
Ao ver neste canteiro, vãos abrolhos.

8




“Quanta gente, talvez, que inveja agora”
Ainda se percebe em olhos vagos,
Buscando noutros rumos mais afagos
Enquanto a solidão, a alma decora,
Esconde-se deveras sob a sombra
E nela se disfarça muito bem,
Mas quando a luz emerge e cedo vem,
Aonde se pensara numa alfombra,
Desconfortável face de um granito
Escondida nos antros da ilusão
Falsificada face, uma visão,
Esgar que tenta ser bem mais bonito.
E assim tal garatuja se desnuda
Numa alma que se mostra tão miúda...


9


“Ver através da máscara da face,”
E ter toda noção do quão vazio
O mundo que percebo e já desfio
Mesmo quando uma luz ainda embace.
Diamantino brilho em torpe pedra
A sorte se desnuda merencória
E aonde se mostrasse uma vitória
Realidade assusta e mesmo medra,
Nefasta esta figura em ar medonho
Irônico e sarcástico Satã,
Moldando noutro olhar um raro afã
Diverso do que agora inda componho,
Mutável quão arisco, mas em vão,
Somente sobrevive da ilusão.


10

“Se se pudesse, o espírito que chora,”
Saber quão dolorido o rumo que
Realidade mostra a quem não vê
A sombra do vazio que o devora.
Perceba quão é fútil caminhada
Deste pavão estúpido e voraz,
Uma alma que no nada satisfaz
Não é além do mesmo e eterno nada.
Vagando sem noção de sensatez,
Gargalha-se em falsário caminhar,
E nele sem sequer saber luar,
Da prata falsifica a própria tez.
E quando se demonstra mais feliz,
Diverso da verdade, o seu matiz.

11


“O coração, no rosto se estampasse;”
A fria realidade que se esconde,
O tanto percebido quando e aonde
Transcorre como fosse um vão impasse.
Transcende-se ao vazio e sem porvir
Num quanto mais audaz se mostra o chão
E teima flutuar, mero fantoche,
Por mais que a própria vida inda deboche
Cultivando esta agreste plantação
Colhendo no final, tantas daninhas,
Geradas por semente duvidosa,
Aonde prometera lírio e rosa,
Gramíneas mais vulgares, o que tinhas.
E quando este disfarce cai por terra,
Desnuda a podridão que ali se encerra...

12

“Tudo o que punge, tudo o que devora”
Expressa a realidade mais venal,
Aonde se pensara em triunfal
Apenas o vazio e sem demora.
O gesto caricato de quem tenta
Vencer com fantasias a verdade
Por mais que o dia a dia se degrade
Gerando tão somente esta tormenta
A pútrida visão do nada ser
Tomando já de assalto esta figura,
O quanto na verdade se afigura
Demonstra tão somente o desprazer,
E assim ao caminhar em falsas sendas,
Verdades se transformam, meras lendas.

13


“N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,”
A dura face escura do real,
E quando se pensara em virtual,
O nada diz do nada em outra face.
Assisto à derrocada do vazio
E nela se percebe muito aquém
Do quanto se disfarça e não contém
Somente ao invernar qualquer estio.
Vivendo de aparências tão somente
Omite-se a verdade e quando vejo
Feição do que pensara mais sobejo,
Carcaça traduzindo esta semente
Jogada sobre um solo mais agreste,
E nele cada inseto que me infeste.

14

“Se a cólera que espuma, a dor que mora”
No peito de um farsante ora desnudo,
O quanto se demonstra tão miúdo
O que pavoneando se decora.
Herméticos caminhos, mas vulgares
E neles os anseios morrem vãos,
Abortam-se deveras tantos grãos,
Criando do vazio seus altares.
Ao passo ensandecido desta turba
Entranho nas diversas dimensões
Que tanto quanto mentes sempre expões
Aonde a realidade se conturba
Percebe-se o falsário, este imbecil,
Que quando à luz do sol, não resistiu.

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