segunda-feira, 12 de abril de 2010

HOMENAGEM A CAMPOS D 'OLIVEIRA

O PESCADOR DE MOÇAMBIQUE

— Eu nasci em Moçambique,
de pais humildes provim,
a cor negra que eles tinham
é a cor que tenho em mim;
sou pescador desde a infância,
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei.

Antes que o sol se levante
eis que junto à praia estou;
se ao repouso marco as horas
à preguiça não as dou;
em frágil casquinha leve,
sempre longe do meu lar,
ando entregue ao vento e às ondas
sem a morte recear.

Ter contínuo a vida em risco
é triste coisa — sei que é!
mas do mar não teme as iras
quem em Deus depõe a fé;
é pequena a recompensa
da vida custosa assim;
mas se a forme não me mata
que me importa o resto a mim?
Vou da Cabeceira às praias,
atravesso Mussuril,
traje embora o céu d´escuro,
u todo seja d´anil;
de Lumbo visito as águas
e assim vou até S ancul,
chego depois ao mar-alto
sopre o note ou ruja o sul.

Só à noite a casca atraco
para o corpo repousar,
e ao pé da mulher que estimo
ledas horas ir passar:
da mulher doces carícias
também quer o pescador,
pois d´esta vida os pesares
faz quase esquecer o amor!

Sou pescador desde a infância
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei;
e enquanto tiver os braços,
a pá e a casquinha ali,
viverei sempre contente
neste lidar que escolhi! —




1

“neste lidar que escolhi”
Tanta sorte desairosa
a saudade toma e glosa
Já me leva até a ti
Das estâncias do querer
Dos momentos mais felizes
Muito além do que me dizes
Disfarçando o desprazer
Com ternura e com encanto
Cada dia desvendado
Fala agora do passado
Que decerto ainda canto
Laborando com a vida
Poesia dita a lida.

2

“viverei sempre contente”
Procurando a minha estrada
Nesta lua iluminada
Tropical e sempre quente
Moçambique é minha terra
E deveras tanto sonho
Cada verso que componho
A saudade não descerra
A verdade diz do mar
Da beleza de saber
Onde posso ter prazer
Na vontade de encontrar
A justiça a cada verso
Nesta luta sigo imerso.

3

“a pá e a casquinha ali,”
A certeza no horizonte
Deste sol que aqui desponte
Tanto bem eu percebi
Nesta senda a preferida
Neste campo em que se entranha
Na riqueza da montanha
Nele encontro a minha vida
No oceano em azulejo
Cores várias, maravilha
O meu peito também brilha
E um futuro que prevejo
Na certeza de outro dia
Onde a sorte se porfia.

4

“e enquanto tiver os braços,”
Com a força necessária
Nesta luta temerária
Estreitando nós e laços
Navegando mundo afora
O meu canto não se cansa
Nele traça-se a esperança
Neste sol que nos decora
Negritude com orgulho
A senzala já distante
Nesta terra um diamante
Belo mar em que mergulho
Pescador das ilusões
Peroladas emoções.

5


“nunca outro mister busquei”
Nem tampouco buscaria
Ao fazer da pescaria
Nela a vida dita a lei
E também com as palavras
O poeta com o anzol
Interroga suas lavras
Delas forja lua e sol,
Ao banhar-se na alegria
Na tristeza ceva a luz
Quando a treva reproduz
Uma trova já recria
A pureza desta lida
Pela luta traduzida.

6

“a pesca me dá sustento”
E no verso a fantasia
Quem por certo assim porfia
Encontrando o seu alento
Nas entranhas do oceano
Ou nas sendas de uma frase
Tanto sonho que se embase
Muito além do desengano
Cada dia joga a rede
E procura destes peixes
Como as letras ditam feixes
Mata a fome, mata a sede
E já sabe conhecer
Da verdade o seu prazer.

7

“e no mar sempre vaguei;”
Ao viver esta aliança
Entre o quanto já se avança
E desvenda cada grei
Onde possa navegante
Um poeta com seus sonhos
Enfrentando os mais bisonhos
Dias que sempre agigante
Noites tanto turbulentas
E palavras mais sinceras
Encontrando sempre as feras
E bebendo das tormentas
O poeta e o pescador
Neles vivo o destemor.

8

“Sou pescador desde a infância”
E com força nada escapa
A palavra que solapa
Com terror ou elegância
Faz da pesca ou do soneto
Numa trova, no trovão
Encontrando a direção
Destemido me arremeto
E conheço os sete mares,
Rios tantos sei a foz,
Aumentando a minha voz
Nas palavras meus altares
Noite clara, dia escuro
Cais do verso, tão seguro.


9

“faz quase esquecer o amor”
O quanto amor me maltrata
Sorte quanto mais ingrata
Mais difícil se propor
Alegria vez em quando
Quanto mais se pode ter
Mais vontade e mais prazer
Na alegria transformando
Quantas vezes imagino
Nova senda a desfrutar
E decerto tanto amar
Se em amor eu me fascino
Tanto pode quanto deve
Deixa às vezes bem mais leve.


10

“pois d´esta vida os pesares”
Nada podem me dizer
Do terror do desprazer
Muito além do que pensares
Nada tendo quem porfia
Porfiando em luz extrema
A verdade dita a algema
Liberdade é poesia,
Vejo encanto a cada passo
Cada passo desencanta
A verdade em tosca manta
Todo sonho já desfaço
Ou encontro o paraíso
Ou acolho o prejuízo.

11

“também quer o pescador,”
Novo dia em melhor sorte
Sem o sonho que conforte
Vivo as ânsias de um amor
Que deveras tanto meu
Quanto fosse meu passado
Nada sigo, desolado
O caminho se perdeu
Nas ilhotas da ilusão
Nas entranhas deste mar,
Aprendendo cedo a amar
Já não vejo a direção
Cais distante, velho porto,
A esperança nega o aborto.


12


“da mulher doces carícias”
Das delícias de um desejo
Tanto sonho assim eu vejo
Deixo além outras sevícias
Sigo assim de peito aberto
Navegante da palavra
Cultivando a minha lavra
O meu sonho eu não deserto
Correntezas enfrentando
Mares tantos, caracóis
E deveras os faróis
Nos teus olhos desvendando
Nado contra a tempestade
Tanto amor meu canto invade.

13


“ledas horas ir passar”
Depois tento outro caminho
E se tanto me avizinho
Encontrando enfim meu mar,
Nos anseios desta noite
Pescaria da ilusão
Onde ponho o coração
Já não vejo mais o açoite
Pernoitando uma esperança
Neste mar de letras tantas
São deveras o que cantas
Nas angústias onde lança
O passado diz futuro
Novo tempo eu te asseguro.


14


“e ao pé da mulher que estimo”
Os penhascos, as montanhas
Novos dias sempre ganhas
Da esperança em alto cimo,
Cordilheiras vou trazendo
Do meu quanto poderia
Destilando a poesia
Noutro tanto que estupendo
Vida farta em noite clara
Outro peixe em minha rede
De palavras mato a sede
Quando o verso se declara
Formidável fortaleza
Enfrentando a correnteza.


15


“para o corpo repousar,”
Depois de tanta batalha
A verdade nunca falha
Dita as regras deste amar
Ao sentir o vento forte
Da procela que se vê
Procurando algum por que
Onde busco um manso norte
Da palavra com cinzel
Burlando esta esperança
O meu barco sempre avança
Sorte gira em carrossel
Roda a vida, a vida roda
E jamais aceita a poda.

16


“Só à noite a casca atraco”
No teu colo mais gostoso
Dia certo; majestoso
Quando enfim se forte ou fraco
Nada perco nem a sombra
Do que tanto desejei
Nos teus braços eu sou rei
A verdade não assombra
Comandante e até grumete
Nada importa sou só teu
O meu mundo se perdeu
No teu porto se arremete
Timoneiro sem destino,
Nos teus ermos me alucino...



17


“que me importa o resto a mim”
Se a palavra é minha amante
Num momento fascinante
Rega sempre o meu jardim
Pescador com seu anzol
Lavrador tem seu rastelo
Poesia é meu castelo
E decerto mostra o sol
Comandante do meu sonho
Percebendo tanta luz
Cada sílaba conduz
Se risonho ou se medonho
Mal importa uma estação
Inverno outono ou verão.

18


“mas se a forme não me mata”
Nem tampouco me traria
Solução sem poesia
Sorte turva ou mesmo ingrata
Sendo assim eu principio
Cada verso como fosse
Ou no mar ou na água doce
Num inverno ou neste estio
Jogo a rede no arrastão
E sonetos, trovas, faço,
Redondilha quando a laço
Predispondo à geração
Do futuro diz presente
E agora o passado sente.

19

“da vida custosa assim;”
Nas angústias de quem pesca
Tempo quente ou água fresca
Vou cuidando do jardim
Gondoleiro da esperança
Pescador das águas frias
Se nas mãos das poesias
Dia a dia sempre alcança
O momento mais atroz
Esperado ou mesmo quase
No ditar de cada fase
Vida ganha forma e voz,
E se tenho assim o quanto
O que foi ou vem eu canto.

20


“é pequena a recompensa”
Campesino, letras, mar
E se tento navegar
Liberdade recompensa
E se teimo na promessa
De outro tempo que não sei
Não importa mais a grei
Mesma história recomeça
Endereço-me ao futuro
Trago as marcas de quem fui,
A palavra quando influi
Clareando em tempo escuro
Vai cevando com ternura
Até quando em não perdura.



21


“quem em Deus depõe a fé;”
Recebendo a força tanta
E deveras se agiganta
Quando em alta esta maré
Iemanjá é minha Musa
Minha Musa é pescadora,
A minha alma sonhadora
Das palavras cedo abusa
E fazendo do que sou
O que tanto nunca fosse
Amargor tramando o doce
Onde o sonho navegou
Cais em verso; eu pesco o sonho
Tempo novo eu recomponho.

22


“mas do mar não teme as iras”
Nem tormentas da emoção
Dominando o meu timão
Se ao versejo já me atiras
Tiras uno cordoalhas
Faço o tanto do tão pouco
Muito embora até tampouco
Novos sonhos já retalhas
E as navalhas, delas fios
São meus cantos, cortes, luzes
No total não reproduzes
Nem sequer meus desafios,
Passo a passo dia a dia
No tear da poesia.


23


“é triste coisa — sei que é”
Navegar sem ter destino
E se tanto me fascino
Na verdade dita a fé
Poesia não se cansa
Nem tampouco em redondilha
Pescador que faz desta ilha
Recompondo da lembrança
As correntes enfrentara
Com a força do seu leme
Sem ter nada que me algeme
Não suporto mesmo a escara
Avançando contra as ondas
Novos mundos, versos, sondas...


24


“Ter contínuo a vida em risco”
Ao cerzir com meu buril
Tecendo o que não se viu
Muitas vezes mais arisco
O poeta é pescador
Pescador faz poesia
Quando em plena maresia
Sabe a pesca pela cor,
Nos matizes mais diversos
Adivinha cada céu
Tendo assim o seu cinzel
Dele sabe tantos versos
Sou apenas aprendiz
Do que este universo diz.

25

“sem a morte recear”
Sem temores, peito aberto
Das algemas me liberto
Moçambique é , pois meu lar,
Navegando ganho o tempo
Servidão? Pois, nunca mais
Enfrentando os temporais
Não mais vejo contratempo,
Portugueses ou romanos
Moçambicano ou judeu
Novo canto conheceu
Libertários nossos planos,
Pescadores e poetas
Reis, quilombos; sonhos, metas.

26


“ando entregue ao vento e às ondas”
Ninguém cala o sonhador,
Tantas vezes medo e dor,
Nunca mais o canto escondas
Nas senzalas do passado,
Na miséria em fome tanta,
Liberdade se agiganta
Ouço dela o forte brado
Africano coração
Terra bela, tropical,
Esperança toma a nau
E concebe a direção
Se dos sonhos tenho sede
Nas palavras teço a rede.


27


“sempre longe do meu lar,”
O meu povo em voz sofrida
Renascendo nova vida
Nela posso até sonhar
Decifrando este futuro
Com lições do meu passado,
Tendo agora vislumbrado
Porto firme tão seguro
Nada impede o meu caminho
Nem tampouco o mar imenso
E se tanto me convenço
Neste sonho ora me aninho,
Liberdade, liberdade!
Que mais alto o peito brade!


28


“em frágil casquinha leve,”
Em jangadas nordestinas
Se deveras desatinas
Que a esperança sempre leve
Muito mais do que pensava
Quem decerto conheceu
Este canto, teu e meu,
Nunca mais uma alma escrava
Tendo aberto este oceano
Pescador atinge além
E se o canto já contém
Não comete desengano
Vai singrando este horizonte
Até onde o sonho aponte.

29


“à preguiça não as dou;”
Nem tampouco mais daria
Tendo em mim a poesia
Meu caminho se mostrou
Bem mais calmo e mais suave
Navegando em águas claras
E se tanta dor declaras
Sem ter nada que se agrave
Dores fartas noutros tempos
Esperança verdejando
Este dia bem mais brando
Ao vencer os contratempos
Vai gerando esta esperança
Nela o sonho a voz alcança.


30

“se ao repouso marco as horas”
E jamais me entregaria
Tendo a voz da poesia
Nela os sonhos, pois, decoras
Percebendo quão é belo
O caminho de quem ama
Ao manter decerto a chama,
Novo encanto eu te revelo
E fazendo deste verso
O que tanto se fez meu,
O meu canto conheceu
Senso tanto e mais diverso
Expressando esta beleza
Vence sempre a correnteza.


31


“eis que junto à praia estou;”
Depois de farta procela
O meu canto agora sela
O que tanto procurou
Poesia dita o sonho
O meu sonho dita a senda
Onde bem maior se atenda
Este quanto já proponho
Ao cevar o meu caminho
Nesta aurora boreal
O meu rumo, minha nau,
Da verdade me avizinho
Ao pescar cada emoção
A palavra é meu timão.


32


“Antes que o sol se levante”
Percorrendo em mar bravio
O temor eu desafio
Tenho um sonho fascinante
Poesia é minha senda
Interroga-se este anzol
Arquipélago ou atol
Na vontade que se acenda
De viver a liberdade
E saber da maravilha
Coração seguindo a trilha
Deste tanto que me invade
Sou poeta e pescador,
Nas tempestas de um amor.


33


“nunca outro mister busquei”
E nem mesmo se eu quisesse
Poesia dita a messe
Cada verso traça a lei
E se tanto quanto posso
Caminhar em luz tranqüila
A minha alma já desfila
Neste encanto meu e nosso
Venço toda tempestade
Não conheço mais temor
E se tento me propor
Não suporto qualquer grade,
Quando vejo o imenso mar,
Cada verso a me tomar.


34


“a pesca me dá sustento,”
Coração ditando a norma
A verdade não deforma
Nem tampouco me apascento,
Mas se tenho o sonho eu vejo
Muito além e sigo em paz,
A vontade mais audaz
Completando o meu desejo
Sem temores, vou liberto
Singro mares, ganho céus
E coberto por tais véus
Não encontro um só deserto
Renascendo aonde quero,
Mesmo em sonhos sou sincero.


35


“e no mar sempre vaguei;”
Sem temer qualquer tempesta
Ao abrir no peito a fresta
Tanto sonho enfim cevei
E se mostro a cada instante
A verdade ou mesmo um pouco,
Sem o verso me treslouco
Meu caminho se adiante
Na palavra que traduz
O que tanto se queria
Bebo em fonte a poesia
E transpiro em farta luz,
Assistindo desde então
Os momentos que virão.


36


“é a cor que tenho em mim;”
O negro de minha pele
Tanto sonho que revele
A beleza de onde vim,
Das vergastas e dos medos
Dos medonhos dias traços
E se adentro novos laços
Deles bebo os seus segredos
Dos enredos que proponho
Das palavras que profiro
Sem senzala faca ou tiro
Só nas mãos mantendo o sonho,
Ninguém pode mais conter
O mais belo amanhecer!


37


“a cor negra que eles tinham”
Como fosse marca rude,
Muito mais do que bem pude
Novos dias nos convinham
Galopando em martes tantos
Sem saber de qualquer medo
Nesta rede em que concedo
Os meus dias sem quebrantos
Vendo enfim nascer o sol
Dominando este cenário
Navegar é necessário
O meu mundo diz do anzol
E se tanto ainda luto,
Já rasguei há muito o luto.


38


“de pais humildes provim”
Pescador por profissão
Tendo em mim tanta emoção
Cada sonho, um estopim
Ao me ver em mar distante
Nada temo, nem a morte,
Neste tanto que comporte,
Minha força se agigante
O poeta do poetas
Sendo também sonhador
Escolheu no pescador
As pessoas prediletas
E deveras com perdão
Dominou sempre o timão.


39


“Eu nasci em Moçambique,”
Africano pescador
Entre medo, risco e dor
O meu barco quase a pique
Navegando em mar azul
Nestes tantos corações
Quando em várias direções
Norte, leste, oeste ou sul
Percebi quanto se deve
Com a força deste sonho,
Ao vencer temor medonho
Uma alma que seja leve
Entranhando este universo
Com a força em cada verso.

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